O
fato é que ninguém acredita que seja possível acabar com as mortes no
trânsito, nem a ONU, tanto é que elegeu como meta da Década de Ações
Para a Segurança Viária (2011-2020) o feito de reduzir 50% das mortes
decorrentes de acidentes de trânsito no mundo. Esse foi o argumento
utilizado por um colega para encerrar a conversa sobre se conseguiremos
ou não alcançar as metas da ONU em reduzir à metade às mortes no
trânsito. O caro colega pode não acreditar. A ONU pode não acreditar,
mas eu acredito na filosofia e na cultura do zero acidente como um ponto
de partida.
Por mais que pareça óbvio que haja mortes no trânsito em um planeta
com mais de 7 bilhões de pessoas, com uma frota mundial de 1 bilhão de
veículos de todos os tipos e com as vias públicas virando campo de
extermínio por falta de segurança, autocuidados, planejamento,
investimento e em que os comportamentos e atitudes detonam esse gatilho,
o que nos impede de perseguir a meta zero acidentes e zero mortes?
Temos empresas, institutos, campanhas e outras ações voltadas para o
zero acidente em diferentes segmentos da sociedade. A proposta do zero
acidente vem antes dos números e da frequência com que são provocados e
diz respeito a uma filosofia e a uma cultura que norteia o modo de
pensar, que influencia o modo de agir, os hábitos, os costumes,
comportamentos, condutas, atitudes e as práticas sociais neste sentido.
Reduzir os números e as estatísticas é uma consequência do exercício da
filosofia do ato responsável pelo indivíduo ao desempenhar todos os seus
papéis no trânsito. Não dizem que quando a força é canalizada para uma
mesma direção o obstáculo é removido?
Quando se tem a acidentalidade viária como a praga do século e um dos
maiores desafios a ser enfrentado e se elege uma meta de reduzir as
mortes à metade já é admitir e passar a mensagem subliminar de “é
impossível reduzir a quantidade de mortes no trânsito em todo o mundo.” E
assim deixa-se o gancho e a “deixa” para a desculpa nos discursos que
tentam justificar o porquê de não se conseguir atingir as metas da
década. Salvaguardada a obviedade de que é preciso muito mais do que a
formação de uma cultura neste sentido, mas é o ponto de partida.
Não raro ouve-se até em meios acadêmicos o mesmo argumento: “nem a
ONU acredita que se possa acabar com as mortes no trânsito”, o que não
chega a ser diferente do soco na cara que levamos quando ouvimos um
bandido da pior espécie ou um matador contumaz no trânsito dizer que ele
não é o primeiro e nem será o último. No fim das contas, vão zoar tanto
a ONU por supostamente não acreditar que se possa eliminar mortes e
acidentes, quanto aquele que acredita que isso possa ser adotado como
objetivo em nível mundial.
Não sei se algum gestor ou governante teria vergonha de anunciar um
objetivo ou programa de zero acidente de trânsito em seu município,
estado ou país, mas é bem provável que sim. Talvez, por conta das
cobranças, principalmente quando os números da acidentalidade disparam.
Talvez, porque também não acredite nisso ou não se invista nisso.
Enquanto continuarmos acreditando que cada vítima no trânsito não
será a primeira e nem a última, não conseguiremos acreditar em uma
filosofia e uma cultura voltada para a humanidade e a segurança no
trânsito.
Enquanto se continuar a tentar explicar os acidentes e as mortes pelo
comportamento e as atitudes exclusivas dos condutores ou pedestres, se
continuará a se eximir das responsabilidades coletivas na esfera da
fiscalização e da engenharia, investimentos, manutenção e correção das
vias.
Enquanto os cargos-chave na área de trânsito, planejamento, gestão,
educação, continuarem a serem ocupados em troca de favores políticos,
indicações, barganha e não por concurso de provas e títulos, muitas
pessoas sem formação específica e sem know-how continuarão no comando e
na dança das cadeiras a cada gestão política. O resultado é que os bons
projetos e ações estratégicas para o trânsito seguro – quando e se
iniciados – geralmente são abortados porque são obra do outro e a
população inteira sai prejudicada.
Enquanto as mortes no trânsito continuarem a dar lucros para alguns
(e alguém sempre lucra com isso), não se partirá para o enfrentamento
sério, de verdade, do problema da acidentalidade mundial.
Enquanto se fizer reuniões, fóruns, encontros, assembleias e outros
eventos grandiosos para se tratar mais do número aceitável de vítimas e
mortes no trânsito do que de uma filosofia e a cultura do zero acidente e
zero morte no trânsito, continuaremos a jogar fora o bebê junto com a
água do banho.
Existem coisas para as quais o meio termo não se aplica. Não dá para
encarar a questão da redução da mortalidade no trânsito como se viver
com sequelas físicas, neurológicas e sociais fosse um lucro por não ter
morrido em um acidente. E para quem pensa o zero acidente e zero morte
no trânsito como idealismo, cabe lembrar que as ações que mudam a
realidade brotam do modo de se pensar a própria realidade. Neste
sentido, a sociedade e as instituições precisam urgentemente rever os
seus conceitos.
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